
Era uma loja antiga de sapatos.
Entrei atraída pelo couro e pelas caixas. Em verdade, sempre tive atenção especial por sapatos nos pés, por essa conexão sobre o que materialmente escolhemos colocar em contato com a terra.
Ofereci os meus serviços: compro e troco sonhos impossíveis!
Levantou um senhor com os botões da camisa um pouco abertos, frágil e de pele fina, disse-me que não tinha sonhos. Espantei-me e tentei argumentar que sonhos podem nos fazer voar. Seguidamente ouvi Nãos enfáticos e resistentes. Agradeci a breve conversa e já prestes a sair por não ter conseguido abrir espaços naquele senhor, apresentei-me como Maria e disse-lhe: - Muito prazer! Ergueu-me a mão esquerda para que nos cumprimentássemos justificando que seu braço direito estava doente. Sem que eu perguntasse logo me mostrou a ferida e o tumor protuberante de um câncer.
Descobri que era sobre aquilo que queria falar.
Por instantes, me senti uma tola insistindo em sonhos quando outra vez a realidade do cruel me fazia acordar. Retomando a crença no imaginário e na magia, sem hesitação, disse-lhe que daria uma flor para ajudar a re-descobrir seus sonhos.
Pedi licença para sentar e enquanto pintava para ele uma flor, conversamos por longos 40 minutos. Eu, estrangeiras e de passagem; ele (de acordo com ele próprio) legítimo paraunense. Nunca teve filhos, nem esposa. E enquanto conversávamos um neto veio convocá-lo para o almoço. (Mas como neto se nunca teve filhos? Também me fiz a mesma pergunta). Explicou que depois de muitas desilusões adotou uma menina e a criou. Ela teve um filho, que assim que nasceu passou a morar com ele, já que ela mudara-se para a Espanha. Isso fazem 8 anos. Ela voltou recentemente a Paraúna para cuidar do pai adotivo e trouxe um cachorrinho espanhol que era o sonho do filho/neto. O cachorro só atendia a comandos em espanhol e o menino dizia palavras em inglês (que aprendia na escola), afirmando que inglês e espanhol eram línguas “quase iguais” e que aquelas palavras que dizia para o cachorro eram as mesmas nas duas línguas. Ensinava o avô: plus e sit. De acordo com ele, correspondiam a “deitar” e “sentar”, respectivamente. Ele me ofereceu uma música sobre um menino abandonado e cantei para ele Violeta Parras em espanhol. Me solicitou ainda uma coleira para seu cachorro já que não o obedecia (mesmo em inglês!). Pintei uma coleira para ele.
Enquanto isso, o avô cheirava a flor e dizia que eu era muito otimista por acreditar em sonhos e que para ele já havia “passado da hora”. Expliquei que sonhos podem ser conquistados no próximo segundo e que o tempo, o espaço, a vida são relativos.
Como um presente divino, apareceu um outro senhor dando aquele “Bom dia!” cotidiano do interior. Era visita para o “Seu José”. Enquanto finalizava a pintura da coleira, ouvia a conversa dos dois senhores que não se viam há meses. O Seu José II também teve câncer há mais de um ano e tratou-se com êxito. Fez 35 sessões de radioterapia enquanto o Seu José I estava na 5ª. de quimioterapia e já tinha retirado 1m de “tripa” (assim diziam). O Seu José I já tinha perdido as esperanças e o amigo tentava animá-o pedindo que tivesse FÉ! Aproveitei: - É preciso acreditar nos sonhos, não é verdade?
Uma estranha cumplicidade tomou conta da loja de sapatos e Seu José II partiu reflexivo.
O neto brincava com o cachorrinho de coleira nova e baixinho ouvi Seu José falando de um sonho: - Tenho o sonho de encontrar uma senhora que me ame.
Contraditoriamente, assim como todos nós que sentimos e pensamos, voltava a dizer que não tinha sonhos e me contava suas aventuras amorosas, segurando a flor que lhe pintei.
Abri minha maleta disposta a escrever aquele sonho que acabara de ser re-descoberto, mas rispidamente me interrompeu dizendo que NÃO EXISTIA SONHO! Colocou as mãos nos olhos e em silêncio, para que seu neto não percebesse, chorou quietinho segurando minha mão, deitado no mesmo sofá de quando o encontrei. Ficamos assim em silêncio por segundos intermináveis quando finalmente disse alto: - Sim! Tenho este sonho e quero que o escreva. Prontamente pedi que escolhesse a pedra de seu sonho e sentido o peso dela apoiada no coração escrevemos o seu sonho amarrando-o à pedra.
- Carregarei o seu sonho para fazê-lo voar e você libertará o peso de seu sonho. Estamos combinados assim?
- Sim.
Me agradeceu a visita com os olhos marejados de esperança, consciente de que o amanhã se refaz a cada segundo e que temos guias, nossos sonhos, mesmo em segredo.
Recolhi meus pertences e chegando à porta olhei para os dois lados da rua ainda sem saber para onde ir. Olhei para trás, para Seu José, e dei adeus!, seguindo pelo lado direito.
A Caixeira
Me arrepiei ao ler este texto, já tinha visitado o blog antes, mas não cheguei a ler todos os textos antes... hoje eu li e realmente fiquei super feliz em saber que vocês fizeram alguem desacreditado da vida refletir sobre o sonho, pois o sonho é essencial para quem ainda tem esperança... você pode ter certeza de que apartir deste dia você deu esperança para esse senhor em acreditar na vida!! PARABENS!!!
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